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Fazer o simples e persistir no erro:

sobre a ação pública que quer varrer a Cracolândia

Dois tradicionais aforismos da gestão pública obtiveram, na última semana, novas ilustrações representativas. O primeiro: para alcançar efeitos diversos, exigem-se ações diversas. O segundo: problemas complexos exigem, em regra, abordagens complexas. Erra o agente público quando repete equívocos passados; erra o agente público quando adota soluções simples e atropeladas.

No último dia 21 de maio, uma operação conjunta entre os governos estadual e municipal de São Paulo mobilizou mais de mil policiais e guardas civis metropolitanos. O intuito? Retomar o território conhecido pejorativamente como cracolândia, no bairro da Luz, região central da cidade.

Trinta e oito pessoas foram presas. Armas e drogas foram apreendidas. Na retaguarda da operação, dezenas de tratores anunciavam a novidade: prédios, bares e hotéis situados nas imediações do chamado fluxo – local de concentração de uso e venda de drogas – seriam derrubados, dando início ao aguardado projeto de revitalização do bairro. No fim da tarde daquele domingo, o prefeito João Dória declarou à imprensa: “A cracolândia aqui acabou, não vai voltar mais. Nem a prefeitura permitirá nem o governo do Estado. Essa área será liberada de qualquer circunstância como essa. A partir de hoje, isso é passado”. Também gravou um vídeo para as redes sociais, com a mesma mensagem triunfante, visualizado mais de 5,6 milhões de vezes em uma semana.

 

À esquerda, o prefeito de São Paulo, João Dória, grava vídeo sobre a operação na cracolândia (Facebook). À direita, policiais avançam sobre o fluxo. (Werther Santana/Estadão)

As cenas que se seguiram foram caóticas. Para além da violência da intervenção em si e do desrespeito a outros direitos fundamentais básicos – como a proteção de pertences próprios -, imagens de usuários e usuárias esfarrapados fugindo pelas ruas da cidade foram transmitidas pela TV e relatadas pelos jornais. Em menos de uma semana, uma “cracolândia fluida” se reagrupou a poucos metros do centro da operação e 22 novas cenas de uso de crack surgiram na cidade. Pessoas desalojadas de suas casas e barracas vagavam pelos serviços de acolhimento da prefeitura, que, atônitos, demonstravam total desconhecimento sobre a operação e se mostravam incapazes de absorver a nova demanda. É ilustrativa a imagem de pessoas dormindo novamente no chão, dentro de albergues da prefeitura. O auge do disparate foi a derrubada de um edifício sem que os ocupantes fossem antes retirados. Três pessoas ficaram feridas.

Sob críticas de um arco inédito de instituições e entidades – Ministério Público, Defensoria Pública, associações médicas, entidades nacionais e internacionais de direitos humanos, conselhos municipais, estaduais e federais de variados setores e associações de juízes – e, ainda, em franca violação à Lei da Reforma Psiquiátrica, a Procuradoria do Município ingressou na Justiça com pedido de “busca e apreensão de pessoas em situação de drogadição que estão vagando pelas ruas da cidade de São Paulo”, a fim de que fossem levadas a uma equipe multidisciplinar e, eventualmente, internadas compulsoriamente. O pedido liminar, surpreendentemente deferido em 1ª instância, foi cassado pelo Tribunal de Justiça. Na terça-feira (30.05.2017), o TJ-SP  extinguiu o processo por ilegitimidade de parte.

É impossível prever os próximos capítulos da intervenção. No entanto, é seguro afirmar que a cracolândia, pela perspectiva dos sujeitos, não vai acabar.

Os desafios de Gestão

Dizer que o “problema das drogas” ou o “problema da cracolândia” é um assunto complexo é truísmo. Há dimensões de saúde, segurança pública, política criminal, moradia e direitos humanos, bem como elementos de desigualdade econômica, social e racial, que se entrelaçam. É necessário aceitar tal dificuldade, e é injusto e incorreto cravar soluções a priori. É preciso admitir que qualquer ação específica demandará ajustes em seu curso.

Problemas complexos, como os citados, em regra incentivam três cenários à gestão pública. O primeiro é o da paralisia decisória e da hesitação na execução. Com relativo ganho eleitoral – se sai melhor quem erra menos –, talvez seja essa uma das maiores tragédias da gestão pública contemporânea no Brasil. O bom gestor torna-se aquele que nada faz, em nada erra, e que consequentemente não produz efeito algum.

O segundo é o de tentar atacar em todas as frentes simultaneamente. Voluntarioso, requer arranjos governamentais e recursos públicos nem sempre disponíveis. Acerta-se na intenção, mas frequentemente se falha na implementação.

O terceiro é o de priorizar perspectivas ou, até mesmo, adotar novos pontos de vista no momento de estruturação da política pública. Ao desenvolver o programa, o gestor abre mão de alguns objetivos possíveis, ainda que momentaneamente, dando ênfase a um objetivo central. Declarado ou oculto, deve ser ele a métrica de sucesso da política.

Em certa medida, tem sido esse o padrão das ações. Abordagens parciais, de maior ou menor amplitude, que atacam parte dos problemas. Mas seja qual for o caso, dois equívocos que independem do mérito não podem ser cometidos: não aprender com eventos passados e não aceitar a dificuldade da tarefa. Parece que o aviso não valeu a todos.

Alternativas Políticas: “Limpar a área”, “Bolsa-crack” e o Programa De Braços Abertos

Ao longo dos anos, várias gestões da Prefeitura de São Paulo optaram, explícita ou implicitamente, por ataques parciais ao problema da cracolândia. Afastando-se do elemento humano e assumindo a linha do combate ao tráfico, escorada em eufemística ideia de “readequação urbanística”, tentaram, sem sucesso, “limpar a área”. Em geral, escolheram incursões violentas no território. Invariavelmente, os resultados foram desastrosos.

Para além do agravamento das condições de vulnerabilidade da população, grupos de usuários e usuárias se espalharam, temporariamente ou permanentemente, por outras regiões da cidade. A aglomeração inicial não desapareceu. Ao final dos processos, a situação tornava-se pior do que a inicial.

A última intervenção do tipo, em 2012, foi realizada ainda sob a gestão do prefeito Gilberto Kassab. Muito parecida em forma, conteúdo e consequências com a atual operação, também levou à violação de direitos básicos e ao espalhamento de usuários em um curto período de tempo. A cracolândia, como bem se sabe, continuou a existir. O objetivo central não foi atingido[1].

A sequência de fracassos inspirou a gestão do prefeito Fernando Haddad a desenvolver programa diferente. Em suma, valia aprender com o passado e propor atuação distinta, ainda que, em um primeiro momento, bastante impopular. O programa São Paulo de Braços Abertos (DBA) inverteu a lógica das ações públicas que anteriormente fracassaram. Tirou o foco central da drogadição e o colocou na redução da vulnerabilidade dos usuários e usuárias. Assumiu a questão do tráfico como importante, mas não a alçou a condição primeira para o cuidado com os usuários.

A partir da consideração de que a oferta de moradia, e não a exigência de abstinência, seria a melhor forma de começar a enfrentar o ciclo de exclusão que, invariavelmente, acomete os frequentadores da região, a prefeitura contratou vagas em hotéis da região, oferecidas a beneficiários cadastrados.

A oferta de moradia foi seguida pelo desenvolvimento de frentes de trabalho, sob a convicção que a remuneração pelo trabalho ajudaria as pessoas a organizar suas vidas, mesmo admitindo que parte desses recursos poderia ser usado para a compra de drogas. Conjugou, ainda, ações fortes de assistência social, com a reconstrução de vínculos perenes com os usuários, bem como um avanço importante em práticas de saúde em redução de danos. Em seu auge, cerca de 500 pessoas aderiram ao programa, entre as mais de mil que frequentavam o fluxo.

A aposta em um programa que tinha como objetivo a redução da vulnerabilidade da população usuária de drogas e a melhoria de suas condições sociais básicas foi arriscada. No entanto, na métrica condizente com seus objetivos, havia significativo sucesso. O bem-estar dos beneficiários apresentou inegável melhora: entre outros indicadores favoráveis, 95% afirmaram que o DBA teve impacto positivo ou muito positivo em suas vidas, e dois terços relataram diminuição no uso de crack após o ingresso no programa.

Não obstante, como todo programa inovador, é preciso admitir suas dificuldades. A gestão dos hotéis se mostrou problemática, e as frentes de trabalho tinham limitações claras. A exigência orçamentária para a ampliação do programa era crescente e, em certa medida, de difícil atingimento.

No mais, o DBA enfrentou forte resistência política. Ficou exposto a críticas relativas a problemas com os quais não havia se proposto a lidar. O maior deles: o fluxo seguia ativo, embora menor, com a livre circulação do tráfico e se apropriando de um espaço público. Além disso, ao não exigir abstinência para a adesão dos beneficiários, gerou atritos com programas do governo do Estado, que ofereciam leitos de internação e possuíam convênios com clínicas privadas e comunidades terapêuticas. Embora os programas não fossem excludentes e a cooperação entre as equipes técnicas fosse frequente, as críticas públicas ao modelo da prefeitura ecoaram na imprensa e no público conservador.

O “gestor” legitimado e a ação atropelada

Durante a campanha para as eleições municipais, em 2016, os três principais candidatos de oposição ao prefeito Fernando Haddad defenderam o fim do programa. A campanha vencedora afirmou que o Braços Abertos era o “Bolsa-Crack”. Eleito, ficou claro que João Dória não manteria o DBA, independente de considerações técnicas que demonstrassem sua utilidade para a melhoria das condições de vida e para a garantia de direitos básicos. Um novo objetivo seria escolhido. E havia legitimidade democrática pra tanto.

Não está em causa, aqui, o mérito da política proposta pela nova gestão – em que pese  se deixe claro que, na visão dos autores, a linha racista, higienista e desumanizada, camuflada pelo ideal de retomada de território, merece objeção irrestrita. Coloca-se em questão o desafio da gestão pública em uma sociedade democrática: atender aos comandos da política, reafirmados durante os ciclos eleitorais, observados critérios mínimos de racionalidade na elaboração da política pública.

O início do novo governo deixou claro que a construção da política municipal para a região da Luz não se basearia em experiências, ou em um processo de formulação sólido. Teria como perspectiva central atender às expectativas do eleitorado e maximizar a exposição midiática do novo prefeito. A operação deflagrada em 21 de maio foi a consequência de um processo político anterior, que começou antes da posse da nova gestão municipal.

No caso específico, mesmo diante da premissa de limpeza da área e de retirada dos indesejáveis, os vários fracassos em operações similares anteriores deveriam servir de alerta para que as gestões municipal e estadual não repetissem os mesmos erros. Nem optassem por soluções mágicas.

A observação do histórico das ações em São Paulo poderia ter evitado a tragédia, ainda que sob a métrica toda própria da nova gestão. O aprendizado com exemplos internacionais também poderia evitar equívocos básicos: bastaria olhar para o que ocorreu na área do Bronx, em Bogotá, no ano passado, em que uma operação muito mais cuidadosa e planejada em território similar à cracolândia paulistana resultou em centenas de novos agrupamentos de pessoas em situação de extrema vulnerabilidade por toda a cidade. Em outras palavras: a remoção forçada do fluxo não deu certo mesmo em circunstâncias mais favoráveis, com intervenções mais diligentes. Não seria com uma operação açodada, sem suporte de equipes multidisciplinares, que o objetivo seria alcançado.

Seria possível fazer diferente?

Se, de um lado, a simples remoção higienista dos usuários de drogas é uma tarefa virtualmente impossível e, de outro, uma abordagem distinta mostrou-se politicamente inviável, como lidar com a expectativa – legítima ou não – de que um programa voltado para a região da Luz “acabe” com a cracolândia?

Inúmeros exemplos internacionais bem sucedidos de intervenção em áreas urbanas com concentração de uso de drogas poderiam inspirar novas formas de aumentar a adesão desse grupo de pessoas aos serviços sociais e de saúde, como salas de uso controlado[2] e tratamentos com drogas substitutivas..

Um dos exemplos mais conhecidos é o de Vancouver, que em 2003 inaugurou uma sala de uso controlado para usuários de heroína, posteriormente expandido e articulado com programas de metadona e fornecimento de moradia e de geração de renda. O Insite foi avaliado múltiplas vezes, interna e externamente. Concluiu-se que sua operação não apenas era eficiente ao reduzir o número de infecções por HIV, hepatite e as mortes por overdose, como também economizava recursos públicos.

Os resultados positivos sustentaram politicamente o serviço perante a prefeitura e os habitantes da cidade, mesmo diante da oposição do governo canadense. Diante da ameaça de fechamento pelo Ministério da Saúde, então controlado pelo Partido Conservador, a Suprema Corte do Canadá determinou a manutenção dos serviços, ao reconhecer que seu funcionamento é o que melhor atende aos propósitos da legislação de drogas do país: “a sala de injeção supervisionada irá diminuir o risco de morte e infecção, e há pouca ou nenhuma evidência de que ela terá efeitos negativos sobre a segurança pública”.

Tais experiências partiram de pressupostos distintos daqueles que lastrearam a ação mais recente e estabeleceram objetivos igualmente diversos. Assim como o DBA, priorizaram a qualidade de vida e os direitos dos usuários. Os indicadores, evidentemente, refletiram as escolhas iniciais, e a redução das mortes por overdose e de contaminação por HIV são razões pelas quais as intervenções foram avaliadas positivamente. Houve, ainda externalidades positivas, como incremento do turismo e redução da violência urbana, a despeito de objeções morais, como a de não buscar a abstinência.

Conclusão

A necessidade de atender a demandas por uma ação militarizada e violenta como a da semana passada cegaram o gestor. Seus efeitos somente ressaltaram o fracasso de operações similares já realizadas anteriormente, que, sem exceção, resultaram no deslocamento do fluxo e em sua consolidação como “territorialidade itinerante”[3]. A operação do último dia 21 de maio foi mais uma tentativa de solucionar uma questão complexa mediante soluções tão simples quanto equivocadas.

O poder sedutor de ações performáticas e midiáticas não deveria se sobrepor aos dados, informações técnicas, relatos de experiências anteriores e alternativas bem-sucedidas, disponíveis para que as gestões municipal e estadual não cometessem os mesmos equívocos do passado. Também não se deve sobrepor, no mérito, a direitos básicos de qualquer cidadão. É o mínimo que se espera de um gestor de verdade.

 Saiba mais

[2] As salas de consumo de drogas são espaços protegidos para o consumo higiênico de drogas previamente adquiridas, em um ambiente ausente de julgamentos morais e sob a supervisão de funcionários qualificados. Esses espaços surgiram nos anos 1990, como serviços públicos ou administrados por organizações não-governamentais, conjuntamente com outras políticas de redução de danos, como resposta à epidemia de HIV e AIDS entre os usuários de drogas injetáveis na Europa. Para aprofundamento, v. HEDRICH, Dagmar. European report on drug consumption rooms. Lisboa: European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction, 2004.

[3] RUI, T., ob. cit, p. 289.

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Luiz Guilherme Mendes De Paiva é mestre e doutor em direito penal pela USP e especialista em políticas públicas e gestão governamental no Governo Federal. Foi secretário Nacional de Políticas de Drogas do Ministério da Justiça.

Felipe de Paula é advogado, doutor em filosofia do direito pela Universidade de São Paulo. Foi secretário Nacional de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça e secretário Municipal de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo.

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